A LIBERDADE E UMA AGENDA
Estávamos em Ourense, no restaurante habitual, nunca me recordo do nome, no nosso dicionário comum é o restaurante que mais se aproxima de uma tasca lisboeta clássica. Não tendo como propósito mostrar-se consoante as exigências particulares da movida, a comida é razoável, o atendimento competente, o preço acessivel acrescido ao luxo superlativo de não termos de levar com música ambiente, termos espaço para poder conversar a sério, de deixar gorjeta, claro, temos medo que o lugar desapareça, por mais que goste da movida ourensana.
Depois essa coisa que parece agora tão antiga e que ao mesmo tempo é tão refrescante: o noticiário clássico. O noticiário clássico, ou seja, com notícias, ou seja novidades, ou seja variadas, ou seja coisas que não sabíamos, em muitos casos inusitadas, em muitos casos, que não podíamos saber de outra forma, em muitos casos pertinentes, já nem nos lembrávamos, sem a linguagem de pau da fonte das agendas de comunicação. Sem muita maquilhagem, directo ao assunto. Ou era assim antes da invasão da Rússia à Ucrânia: refrescante.
Viva a TV Galicia, podemos pensar que está ultrapassada, que é de facto o que todos pensam, mas deviamos pensar duas vezes, pensar em como não nos bombardeia constantemente pela mais reles feitiçaria. Muita gente confunde a liberdade com ser opinativo, adiante, não me quero perder por aqui. Estávamos pois a conversar, já não a via há muito tempo, chama-se Sofia e é militar em Pontevedra, vem de Almeria e é casada com outra militar com que se enamorara em Madrid na recruta. Mulher de contrastes, escapa a todas as espécies de clichés com que as queiramos contemplar. Escreve textos bastante bons, ensaios que diz que só é capaz de mostrar a uns poucos e eu tenho o privilégio de ser um. Gosta muito do seu nome desde que eu lhe falei nos Gnósticos.
Claro que Sofia é atlética, Marte em Escorpião, corre vinte quilómetros todos os dias. Esteve no Afeganistão de onde tirou mais de três mil fotos que só mostrou a três pessoas, é outro privilégio que eu tenho. Ama o seu país. Ama-o com uma ferocidade andaluza. Na foto de capa do Facebook está sempre ali bandeira de Espanha. Pouco importa se é racional ou irracional, ama-a de forma ardente, como a Santa que se celebra na Páscoa.
Com a Sofia, a certa altura, começamo-nos a perder, a especular demasiado. Ela dá-nos a volta, toreia-nos as ideias, as suposições, põem-se a milhas e começa a jogar às escondidas, a verdade é que sabe bem o que quer e mais ainda o que não quer. É uma adepta da sua própria singularidade e toma a sua singularidade como uma verdadeira adepta. Sabe muito bem os terrenos que pisa, os terrenos que os outros pisam e, especulo eu, até os terrenos que não vemos. É um dínamo de energia e propósito. É ela mesma. E se tem de alguma maneira de apresentar ao mundo decidiu que nunca será como uma abstracção. Nunca despe a sua idiossíncrasia, que não está para ter frio.
Mas gosta dos gnósticos, repito, repete: não há pecado, só ignorância. O maior pecado é ignorância.