A César o que é de César
César era dos melhores amigos que se podia ter. Dos melhores amigos que ainda tenho. Há o velho ditado que diz Deus ajuda quem se ajuda a si mesmo. César nunca me pediu ajuda alguma. Isto se não incluirmos na ajuda o tempo que empregamos a dar-lhe ouvidos.
César é homem de desabafar. De desabafar em longos monólogos em longas histórias, todas embaraçosas, de certa forma equívoca, pequenos equívocos sem importância, como diria Carver, não trouxessem elas, no seu equívoco um certo lado grandioso, de conquista do mundo. César sabe expor os contornos do problema, fá-lo com uma rara coragem. Conta a história toda, faz o desenho do mapa, o melhor que pode e sabe na plenitude das suas capacidades.
Touro de signo, já agora, nascido no dia do Milagre de Fátima, que corresponde a várias sexta-feira 13. Nada de superstições, puxo o assunto à descrição, às coisas como elas são. Marco anda entre o supersticioso e o religião, virando as coisas do avesso, ateu não tem nada que o ligue ao Milagre de Fátima, céptico, não admite que sequer toquemos nesse assunto da sexta-feira, 13. Dia de Vénus desde ao nascer do sol até ao amanhecer de Sábado, é importante que se diga.
A primeira vez que o topei, vi logo que era a melhor pessoa do Liceu Pedro Nunes. Puxo agora a cassete do tempo para trás até parar numa manhã qualquer em pleno recreio. O intervalo das dez era de vinte minutos, estava lá toda a gente. Futuros ministros, futuras actrizes, jornalistas, futuros escritores famosos.
O lado negro era simétrico. Mortos pela droga, outros com esse demónio até hoje, um outro num acidente de mota,… outros que se tornaram skinheads, outros no roubo, na delinquência. A maioria, no entanto, perdi definitivamente de vista. Quase todos desapareceram das nossas vidas.
Do César não imaginava o que iria se tornar. Extremamente sociável, dedicado ao skate, fumava charros a tope, como se diz em Espanha, hábito que mantém até hoje e que suspeito que lhe dê cabo a memória, até porque sou eu que me lembro de tudo. O que ainda assim não é pior do que tanta gente que vemos flácida pelos smartphones musculatura no cérebro suficiente para sequer levantar uma tabuada dos dois. Mas adiante. Continuemos com a amizade da escola que se estendia à vizinhança. Vivíamos em ruas imediatamente paralelas, a três quarteirões de distância. Estando a casa de César mais perto da escola, era eu que tocava à porta para ele descer, e logo á primeira vez me familiarizei com a sua lendária lentidão.
Até que um dia cheguei atrasado à escola. Dá-me ideia que não aprendeu nada, siga la viagem. De qualquer maneira a coisa passou, passaram os anos, passou a escola. Não passou a amizade nem a vizinhança. As nossas águas continuaram a seguir o seu curso, muito turvo naquelas alturas de outro tempo em que mais se pode dizer antigamente por não existir ainda internet nem telemóveis. A escola das amizades fazia-se na rua e no que nos doía. E doía-nos muita coisa naquela altura. E Campo de Ourique ainda era um bairro ‘popular’ de Lisboa. Estaria como Saint Germain de Prés da altura, em Paris, com a diferença inversamente proporcional que não se fazia nada.
E quando eu digo nada, é mesmo nada. Havia uma cervejaria aberta até ás duas da manhã e toda a gente estava no Bairro Alto. A O Cais do Sodré só em últimas consequências, no máximo uma vez a cada dois anos. Conceber o espaço como se encontra hoje, com todo aquele turistame e a rua Côr-de-Rosa naquela altura estaria apenas ao alcance da imaginação de uma Ursula Le Guin. Era outra era. Outro tempo tão diferente no mesmo espaço que quase que falamos de outro lugar. Uma Lisboa que já não existe e de que já não posso matar saudades. Do espaço, não necessariamente do tempo. Não devo muitas saudades aquele tempo. Não se passava nada e nós também não queríamos dar uma grande direção à nossa vida. Não achávamos o mundo grande coisa e tão pouco eramos coisa alguma. E como chapéus há muitos, havia uma amiga que me perguntava o que é que eu queria fazer no futuro, eu respondia que queria tornar-me um monstro de energia. Ela tornou-se professora doutorada de filosofia, eu tenho uma garagem de onde escrevo este texto acreditando que tenho faróis nos olhos da alma.
César achava a poesia de Rimbaud uma maradice e apresentava-me Michaux, que me fascinava. Onde é que arranjaste isto? Numa livraria onde bulo. Bules numa livraria? Não cobro nada, é voluntário, é dos anarcas, malta da onda. Era perto do Adamastor. Livros libertários, saltava à vista a capa prateada da ‘Civilização do Espectáculo’ de Guy Débord. Depois haviam os livros de Michaux. Estive ali toda a tarde com o César que não rascou bola porque não entrou ninguém. A falência ia ser uma questão de meses, não daria tempo até que chegasse esta outra Lisboa com outros defeitos.
Já falei um pouco no carácter do César. Por exemplo que há pouco ser humano mais fiável. O Anarquismo continua nele intacto, valha a verdade, com ele aguentou todas as tempestades e provações, até hoje, onde calha confinar-se até ali bem perto do Adamastor. Por mais difícil que esteja Lisboa, a nossa cidade reserva-nos sempre um canto. Somos filhos dela, pudera, pensamos até em lisboeta, dói-nos até mais em lisboeta que em português. Também nos rimos muito em lisboeta. Eu e ele. Eu, que ao contrário dele sou ser cambiante e bastante movível, minha única certeza é a incerteza, minha permanência, a impermanência. O César é veículo duma ideia, eu só penso na ideia como veículo.